Este texto segue os moldes da carta ao leitor, uma prática comum da quase enterrada mídia impressa. Sempre achei simpático e poderoso falar diretamente com quem lê. É, você aí mesmo. Aqui posso explicar os meus motivos. Faz tempo que quero reviver o hábito de escrever de maneira despretensiosa mas ao mesmo tempo sistemática. Escrever também em um lugar mais distante das redes sociais. Acredito de verdade que elas alteram a maneira como lemos os textos, como nos relacionamos com o “conteúdo” (uma das palavras amaldiçoadas do mundo online) numa barra de rolagem interminável. A presença do avatar, mesmo que falso, fomenta um tipo de conversa fulanizada, com ar de dedos em riste nos dias normais ou de briga de bar em dias caóticos. Acho que precisamos todos dar um passo para trás e tentar resgatar pelo menos um fiapo de impessoalidade, de distância psíquica.
Por estranho que pareça um e-mail na caixa de entrada me soa mais impessoal, no bom sentido. E-mail é a menos ansiosa das formas de contato humano (talvez perdendo apenas para carta na garrafa atirada ao mar). Pode demorar dias, semanas, até meses, para ser lido e mais tempo ainda para ser respondido. Esse passo me pareceu o ideal para o que eu tinha em mente. Mas senti que esse projeto da newsletter precisava ser necessariamente restritivo, também no bom sentido (juro que há). Minha sensação é que muito do que se produz online segue um padrão de diário-coletânea ou de informe, nichado ou não, com um quê jornalístico, com compilados de links, comentários, sugestões, notícias, e a famosa editoria dicas. Na minha esquina da internet, todo mundo se comporta um pouco como imprensa, desde gente fazendo as vezes de comentarista esportivo até os críticos casuais de cinema. Claro que essa impressão tem um demográfico e se deve ao fato de eu “consumir conteúdos” de veículos de imprensa, comunicadores, professores, universitários de humanas e jornalistas.
Aqui, desejo que seja algo com restrições porque percebo, baseada em uma intuição que pode estar errada, uma repetição maçante dos assuntos. Quantas vezes alguém já indicou qualquer série da HBO ou o último livro da Companhia das Letras ou aquele artigo incrível da New Yorker? (exemplos extraídos livremente do meu ecossistema digital, peço perdão se isso não faz parte da sua experiência, rs). Quantas vezes por dia vemos exatamente a mesma notícia em diferentes veículos de informação? Mil vezes a mesma foto, mil vezes o mesmo vídeo, suas respectivas versões em memes, tudo em um ciclo que se fagocita e se rompe depois de dois ou três dias. Não teria como ser diferente. É o cerne da ideia de um viral, a repetição em progressão geométrica, e o sucesso de um tema se dá por quão viralizável ele é. Não sei explicar muito bem ainda, mas há algo de ressaca do algoritmo e um tipo de manufatura do senso comum.
Penso que aqui não será o lugar da novidade, “do que está acontecendo”, do resumo da semana, “do que andam dizendo por aí”. Genuinamente, não sei o que está acontecendo. Tudo acontece tanto que às vezes resta ler um livro que você já leu. Pensar de novo uns pensamentos velhos, exercitar a memória. O que não quer dizer que não haverá aqui fatos recentes, mas desgosto do ar generalizado de “tendências do momento”. Em alguma medida, tudo isso parece esquecível, desimportante. Penso que vamos esquecer tudo o que vimos nos últimos dois anos. Ou tudo aparecerá em uma linha do tempo opaca, onde nada se localiza muito bem, como numa memória de infância tão significativa que não conseguimos elaborar. É o que aquele livro do Sebald, Os emigrantes, me diz: em tempos de catástrofe os sobreviventes também perderam algo irrecuperável. Quem sabe isso aqui seja uma tentativa de recuperar algo, falar do que não é de agora, de dar contornos para o tempo passando, vai saber. Pelo menos para o meu tempo (tinha até me esquecido que falei de impessoalidade no primeiro parágrafo).
No mais, esse falatório é para dizer que implementei uma regra na newsletter: vai ser como se fosse um dicionário. A cada edição, uma palavra que tirei de um dicionário de verdade que tenho em casa. A partir desse “obstáculo”, desenvolver um tema com base num verbete (só depois fui notar que há algo de Oulipo na estratégia). Usarei como fonte os quatro volumes herdados de um tio seminarista que mal conheci mas que também cursou letras. Trata-se de uma edição do Dicionário Mor da Língua Portuguesa, com milhares páginas, o que dá uma quantidade virtualmente infinita de edições da newsletter.
O dicionário traz a “nova ortografia de 1971”, conforme o acordo assinado em 22 de abril daquele ano entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa. Ele tem todos os seus problemas de época, cheio de definições antiquadas, e traz imagens tanto entre os verbetes quanto em folhas inteiras, com desenhos que ilustram palavras selecionadas como Satélite, Comércio e Borboleta. A partir desses livros que consulto com tanta curiosidade e carinho, mas que perderam seu sentido prático (estão sob uma regra ortográfica de 50 anos atrás e muito da lexicografia mudou desde então), tive a ideia de tudo aqui, da verbete. Assim, impus o limite de partir sempre de uma única fonte primária. O lado bom é que a fonte se propõe conter quase todas as palavras.
Aos que leram até aqui, muito obrigada.
Um beijo,
Camila
Texto delicioso! Obrigada por compartilhar..
Adorei seu texto. Precioso para os dias de hoje.