a.be.lha¹, s.f. (Entom.) – Inseto himenóptero produtor da cera e do mel comumente chamada abelha doméstica || Dimin.: abelhinha, abelhita. || Aum.: abelhão.
Em termos práticos, acredito que as pessoas sabiam definir o que é uma abelha ou, pelo menos, a abelha arquetípica. Um inseto pequeno com um par de asas, duas antenas, três pares de patas e um abdômen com listras perpendiculares, alternando faixas pretas e amarelas. Ela é conhecida especialmente por produzir um tipo de vômito muito gostoso, o mel – ainda que eu nunca tenha provado o vômito de outros animais, a não ser o meu próprio e o dela. Há registros comprovando uma relação muito antiga entre nós. Em Valencia, na Espanha, existe uma pintura rupestre (a datação varia entre 8.000 a.C. e 15.000 a.C) que retrata uma interação humana com uma colmeia. Ironicamente, a caverna onde ela se encontra foi batizada em homenagem à parente mal vista da abelha: cueva de la araña, ou a caverna da aranha.
Diante de um relacionamento duradouro do qual humanos usufruem de agrados, criou-se uma associação entre abelhas e ideias de vivacidade, cura, sagrado e criação. Tornaram-se símbolo em um imaginário com muitos relatos, mitologias e histórias das mais diversas culturas. Na antiguidade grega, há toda uma tradição relacionando o mel e as abelhas às musas e ninfas, entidades míticas ligadas ao que hoje chamamos de ficção. O néctar, equivalente divino do mel, teria sido descoberto pela ninfa Melissa (“Abelha”) e constituía, ao lado da ambrosia, o alimento dos deuses. Na cultura muçulmana, a dupla abelha-mel aparece na sura XVI: 68-69 do Alcorão, que aborda os benefícios curativos do líquido doce e como suas produtoras se organizam. Abelhas estão pintadas nas tumbas do antigo Egito. Existem várias menções ao universo apiário na Bíblia e as celebrações matrimoniais do mundo europeu vão gerar o termo honeymoon, em português, a lua de mel. No dicionário, outras definições caracterizam abelha também como: uma constelação chamada “Mosca Indiana”; um nome comum dado genericamente a vários insetos himenópteros; uma mulher “esperta, sabida, intrometida”.
Ao todo, são 41 verbetes derivados da palavra abelha. Uma parte especifica seus tipos (“abelha-da-terra”, “abelha-de-purga”), outra é voltada para entradas que explicam abelha no sentido figurado, como adjetivo (“abelhuda”, intrometida) ou verbo (“abelhar”, incomodar). Há ainda abelhas, no plural, definido como “sacerdotisas de Ceres, assim chamadas porque faziam votos de serem puras, trabalhadeiras e vigilantes” ou “abelha-flor”, um tipo de orquídea cuja flor parece ter uma abelha na ponta. Nas definições existem tendências lexicográficas atuais: usar categorias da ciência (“inseto himenóptero”); fazer a distinção entre sinônimos; trazer dados culturais e enciclopédicos (“doméstica”, “sacerdotisas de Ceres”). Uma definição dicionarizada atual não é muito diferente.
No dicionário, entretanto, uma das ideias mais particulares a respeito delas é apenas sugerida, obviamente porque faz parte de um sentido abstrato mais amplo. Abelhas são entendidas como animais sociais caracterizados pela cooperação, por se defenderem de inimigos que colocam a colmeia em risco, por cumprirem hierarquias de trabalho organizado. Causam a sensação de serem diligentes, companheiras e muitas vezes foram usadas como exemplo do que poderia ser uma sociedade humana “melhor”. Por algumas de suas espécies se agruparem majoritariamente entre fêmeas, uma rainha e operárias, são associadas dentro de certa tradição às “mulheres” e à “fertilidade” – ideia que sem o devido cuidado pode virar uma esquina errada, levando a comentários frágeis a respeito de comportamentos sociais em pessoas (já basta o Jordan Peterson e a doidera das lagostas).
a mensagem
Com o boom dos estudos de linguística no século 20, surgiu no debate novas questões a respeito da linguagem. Houve, por exemplo, a preferência do estudo da língua falada ao invés da escrita e análises a respeito da fala humana, que mistura a capacidade cognitiva de articular linguagem e reproduzi-la por meio de um aparato anatômico bastante específico. Tecnicamente, falar pelas vias orais é uma atividade secundária do aparelho respiratório e uma das razões pelas quais outras espécies não falam é porque não possuem esse aparelho. Um dos aspectos singulares da língua humana é algo que se chama recursividade. Trata-se da habilidade de falar de assuntos infinitos usando um número limitado de sintagmas: é literalmente falar de tudo que existe e existiu só com um punhado de sons. Considerando os limites da memória e nossa capacidade de processamento, o ser humano pode combinar frases ad infinitum. Usamos uma quantidade pequena de fonemas para fazer uma declaração de amor, para filosofar, para demitir alguém, para cantar uma música. No limite, pode-se imaginar que golfinhos estejam discutindo uma tradição filosófica milenar, criada por eles mesmos, via sonar. Mas não há prova disso. A quantidade absurda de recursos linguísticos é uma especificidade humana.
Uma das preocupações dessa área de estudo é saber se outras espécies além de humanos são capazes de produzir linguagem. Até hoje a resposta é um categórico: não. Com o mesmo grau de elaboração e complexidade, não. Ainda que pessoas como Yuval Harari digam o contrário, elas estão erradas (aqui a neurocientista Darshana Narayanan explica onde ele erra). Há, contudo, alguns animais em um lugar único nos estudos da linguagem e a pequena abelha-operária está entre eles, assim como primatas, suricatos e mamíferos aquáticos. Talvez o exemplo de mais destaque nesse grupo seja Koko, uma gorila nascida no zoológico de São Francisco em 1971. Koko foi ensinada mais de mil sinais da ASL, a American Sign Language. A história ficou famosa nos anos 1980, quando se noticiou que a gorila pediu de aniversário um gato, batizado por ela mesma de “Allball”, ou “Todobola”. A National Geographic chegou a fazer um documentário sobre o assunto.
Na época, houve um debate se Koko podia de fato compreender um sinal ou se apenas reproduzia gestos. A gorila tinha restrições marcantes em relação à linguagem humana, como o fato dela nunca ter feito uma pergunta e não saber usar propriamente uma sintaxe, mas sua habilidade “comunicativa” chamava a atenção. Por uma intuição narcísica, parece mais ou menos aceitável, ou pelo menos compreensível, outro grande primata “aprender uma linguagem” (aqui esticando o conceito de “linguagem”). Em se tratando de abelhas, existe uma distinção preconceituosa pois animais pequenos são fáceis de menosprezar. Abelhas são invertebradas, não parecem comunicar alguma coisa a alguém. Como algumas intuições, essa estava errada: abelhas transmitem uma mensagem. Ao menos, é o que a observação sistemática afirma.
As que vivem coletivamente, em enxames (há o melancólico verbete “abelhas-solitárias: que têm vida em separado, sem se reunirem umas às outras”), interagem em um orquestrado balé nas colônias com milhares de integrantes. A capacidade de trabalharem e reagirem em conjunto sugeria um sistema de comunicação, mesmo que rudimentar. Karl von Frisch, professor de zoologia da Universidade de Munique, encontrou uma teoria possível, depois de dedicar mais de 30 anos à observação de abelhas e confirmar que elas, de fato, trocam uma mensagem entre si. Frisch observou uma abelha-operária (marcada por ele) que encontra uma fonte de alimento e retorna para sua colmeia. Pouco tempo depois, suas companheiras acham a mesma fonte de alimento sem que a abelha marcada tenha as acompanhado. Percebeu-se que a coletora avisava as colegas: assim que ela chegava à colmeia, era rodeada por suas companheiras com antenas apontadas em sua direção. O gesto serve para apresentar o pólen ou o néctar trazido pela operária. A partir daqui, o professor descobriu que a abelha coletora pode fazer duas danças diferentes.
A primeira é de coreografia simples: uma movimentação em círculos, anunciando que o alimento encontrado está próximo da colmeia, num raio de mais ou menos cem metros. A segunda dança tem passos mais complexos: a operária vibra o abdômen, descrevendo um formato parecido com um 8, como uma dança do ventre (em inglês, wagging-dance. Tem vários vídeos no YouTube). A mensagem indica que a fonte de comida está mais distante, em um local entre cem metros e seis quilômetros de distância da colmeia. O eixo do 8 em relação ao sol indica a direção do local da comida. Desse modo, uma abelha é capaz de contar para companheiras: tem comida em tal lugar, há x metros de distância, naquela direção. É algo que me parece absurdo, mas é o resultado de aproximadamente quatro mil experiências realizadas até por zoólogos descrentes da teoria. O mais engraçado é que Frisch não queria em especial fazer uma descoberta a respeito da linguagem animal (e, por consequência, humana), ele era só um maluco estudando o comportamento da sua obsessão.
O professor que me deu essa aula na faculdade terminou a explicação dizendo: “veja, essas danadinhas têm um signo”. Elas têm mesmo. Os dados da pesquisa mostram que “abelhas são capazes de produzir e compreender uma mensagem, que inclui vários dados, podem conservá-la na ‘memória’, podem comunicá-las simbolizando-as por diversos comportamentos somáticos. Elas têm aptidão para simbolizar, há uma correspondência entre seu comportamento e um dado que se traduz para outras abelhas da comunidade. Há ali uma condição sem a qual a linguagem não ocorre: um ‘signo’ que remete a uma ‘realidade’” (a citação é do texto famoso do linguista Émile Benveniste, Comunicação animal e linguagem humana, capítulo do livro Problemas de Linguística Geral).
Apesar de impressionante, isso é insuficiente para criar uma linguagem. Nenhuma abelha diz à outra “gostei muito do pólen de ontem”, “a flor da semana passada me lembrou meu pai”, ou “aquele néctar de quinta-feira dá azia”. Elas não repetem a informação recebida da abelha coletora para outra companheira, assim, é uma mensagem sem retransmissão e, principalmente, incapacitada para o diálogo. Retransmissão é a pedra fundamental de atividades abstratas como a literatura, a psicanálise, a historiografia, e a fofoca. O único resultado da mensagem das abelhas é um comportamento objetivo no ambiente, não uma resposta em forma, por exemplo, de outra coreografia elaborada. Do ponto de vista físico, abelhas não falam porque não tem laringe, dentes, cordas vocais e pulmões. Não se comunicam à noite porque precisam do sol. E, por fim, sua mensagem não tem possibilidade de análise, não é possível dividí-la em seus elementos formadores. Sabe-se apenas que é a localização de um objeto. Nossas colegas voadoras possuem um código de sinais, caracterizado pela “fixidez do conteúdo, a invariabilidade da mensagem, a referência a uma única situação, a natureza indecomponível do enunciado, a sua transmissão unilateral”. Admirável e profundamente módico, essa é a ironia. Sei que está fora de moda ideias afirmativas da excepcionalidade da experiência humana, mas continuamos solitários no mundo da linguagem abstrata. Entretanto, uma semelhança importante une o sistema de comunicação humano e o código de sinais apiário: ambos se desenvolveram em animais que vivem em sociedade, o que parece ser a condição crucial para linguagem.
a colmeia
(aqui tem muito spoiler da série Yellowjackets e do livro Senhor das Moscas)
Ultimamente, abelhas aparecem bastante no noticiário, ligadas principalmente ao aquecimento global, o desequilíbrio climático responsável direto por sua extinção em massa. Com a trágica morte de todas elas, a polinização das plantas está comprometida, assim como todo o ecossistema. Abelhas protagonizam notícias a respeito do tráfico de animais (sem ferrão são vendidas por até 5 mil reais). O ator Morgan Freeman transformou sua fazenda em um santuário de abelhas para tentar salvá-las do desaparecimento. Curiosamente, abelhas fazem parte de uma certa iconografia da crise ambiental, ao lado do urso polar solitário, boiando sobre uma placa de gelo; da tartaruga marinha comendo canudos de plástico; de chaminés industriais soltando uma fumaça espessa; das imagens de satélites mostrando fenômenos meteorológicos; das animações em 3D de globos terrestres, cujos pólos derretem em questão de segundos; das mãos humanas e brancas que aparecem segurando um pequeno planeta Terra.
Passei a notar representações de abelhas em todos os lugares. Na verdade, passei a procurá-las ativamente. Minha lista mental de coisas que continham abelhas: o clássico da sessão da tarde Meu Primeiro Amor; o ótimo terror Candyman; o oscarizado meia-boca Honeyland; o conjunto de poemas da Sylvia Plath; a música e o álbum Acabou Chorare (“faz zum zum e mel”), dos Novos Baianos; o fandom da cantora Beyoncé, Beyhive, composto por “operárias” da rainha de uma beehive (colmeia); o episódio Hated in the Nation, da série Black Mirror, no qual drones minúsculos formam um enxame artificial; o app de pegação que privilegia a iniciativa feminina, Bumble. Esse interesse recorrente foi motivo suficiente para eu dar play na série Yellowjackets (disponível no Paramount+, do Prime Video). Na imagem de divulgação do streaming, o rosto de uma personagem chamada Jackie (Ella Purnell) aparece com o nariz sangrando e uma abelha pousada na bochecha, dando uma dica a respeito do título. A série conta a história de um time adolescente de futebol feminino, seu mascote é a abelha, presente nas jaquetas amarelas, nos cartazes da torcida e nos gritos de apoio na beira da quadra (buzz, buzz, buzz). Um personagem deprimente que não superou o ensino médio tem até uma tatuagem em homenagem ao time da escola. O momento de virada na vida do grupo ocorre quando o time viaja para uma competição e o avião cai no meio da floresta das frias montanhas canadenses.
Percebe-se um aceno consciente a Senhor das Moscas (1954), de William Golding. No clássico do autor britânico, o inseto é um índice do imaginário da degradação. A mosca é associada à decomposição da matéria orgânica, a doenças infectocontagiosas e a pragas domésticas. A sensação inquietante é reforçada quando se descobre a origem do título. Em inglês, “Lord of the flies” é a tradução de “Beelzebub”, uma transliteração grega do termo hebraico “Ba’alzevuv”. Em bom português, “Belzebu”, popularmente entendido como um demônio bíblico. Em cenas do livro, as moscas surgem rodeando as vísceras de uma porca-do-mato, recém caçada e que teve a cabeça fincada em uma estaca. Com medo de um monstro que parece assombrar a ilha, os garotos decidem ofertar parte de sua caça à entidade, iniciando assim um culto. A sociedade embrionária dos meninos apresenta uma deidade adorada e temida. Mesmo eles tentando implementar um modelo de organização racional, com assembleias e votações, um elemento metafísico, ou pelo menos abstrato para compreensão das crianças, se impõe.
Uma das interpretações para a história é a de que os defeitos da sociedade são reflexos dos defeitos da “natureza humana”. Essa “natureza” fica mais evidente em momentos de crise e trauma, nos quais o ser humano nunca está totalmente em controle consciente de si. O maior pavor dos meninos se mostra o lado sombrio deles mesmos. Nesse contexto, entende-se por “natureza humana” algo muito parecido com o pecado original da tradição cristã, um tema recorrente na obra de Golding. Uma das formas para o monstro da ilha é chamada de “snake-thing”, sendo a serpente o principal símbolo da tentação bíblica. Seres humanos são tratados como corrompidos e o mundo do verniz civilizado é muito precário, é possível sucumbir a qualquer teste mais enfático. Em seu cerne, o texto é uma mistura de parábola cristã com tragédia grega, com referências à Ilíada e Odisséia, de Homero, As Bacantes, de Eurípides (perceba como o grupo dos garotos caçadores funciona como um coro), além da influência da mitologia egípicia, em especial, o mito de Osíris. Uma das morais possíveis do livro é a do triunfo da violência irracional sobre as restrições tradicionais, já que o narrador parece ver um grau de dignidade em alguns valores da tradição.
Em Yellowjackets e Senhor das Moscas, os insetos funcionam como alegoria em um episódio extremo de isolamento e desamparo. No texto de Golding, o grupo é composto por crianças na idade de troca dos dentes e outras recém-chegadas à adolescência. A trama sugere um cenário de guerra, onde a catástrofe nuclear prevista na Segunda Guerra Mundial se confirmou. À noite, caídos em uma ilha do Pacífico, os meninos veem explosões no céu e tudo indica o fim do mundo fora da ilha. Sem a patrulha e os recursos do mundo dos adultos e da sociedade industrial, o grupo precisa se organizar e sobreviver. Na série de televisão, criada por Ashley Lyle e Bart Nickerson, há aspectos espelhados da obra de Golding mas também contrastes inteligentes. As duas histórias podem ser encaixadas em uma tradição chamada Robinsonade, iniciada com Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (fiz um texto sobre esse livro e a formação do romance para a revista Deriva, em 2018). Ela aborda o tema do isolamento humano em um “cenário natural”, em especial uma ilha deserta mas não apenas, e reverbera certa mentalidade colonial. São mais de trezentos anos com obras como O Náufrago, Lost e até mesmo Perdido em Marte (em inglês The Martian, aquele filme do Matt Damon plantando batata em outro planeta), cristalizando na cultura popular o gênero “ficção de sobreviventes”.
Em comparação ao livro de Golding, Yellowjackets tem como diferença fundamental o tempo da narrativa (além da óbvia, o grupo ser de meninas). Enquanto no livro é mostrado apenas a experiência dos personagens na ilha, em que a vida antes e depois do ocorrido é só especulação, na série duas linhas do tempo principais se intercalam. Dividem a narrativa o ano do acidente, 1996, e 25 anos depois, em 2021, com as sobreviventes adultas (tem alguns flashbacks anteriores a tudo isso, mas vou deixá-los de lado). A missão dada ao espectador é entender o que levou as protagonistas às barbaridades da primeira cena: uma caçada humana e o que parece ser um ritual canibal. Aqui está a referência essencial. No fim de Senhor de Moscas, o grupo está caçando o último menino não convertido ao regime de Jack e a trama é resolvida por um deus ex-machina: um navio da marinha chega à costa da ilha, com a insinuação de que o mundo exterior não está muito melhor. A série propõem: e se uma caçada desse tipo dá certo? E se nenhum navio chega a tempo? É o ponto de partida do programa, em que a linha do tempo passado reproduz bastante o livro e a história do tempo presente traz os novos elementos a serem desenvolvidos. Sabe-se o desfecho do acidente: elas foram resgatadas após eventos traumáticos, mas não se sabe os meios desse processo e suas consequências.
Se as moscas em Golding representam o mal interior, uma mácula da alma, as abelhas surgem com uma aura bem mais digna, nobre. Todavia, é uma imagem ilusória, revelando, na verdade, um grupo social totalmente habilitado para a crueldade. Dois episódios têm títulos com referências diretas ao mundo das abelhas, o quinto “Blood Hive” (colmeia de sangue) e o oitavo “Flight of the Bumblebee” (o voo da abelha). No nível superficial, o sangue do título é relacionado ao momento de “sincronia” da menstruação das sobreviventes na floresta. No âmbito mais profundo, a colmeia é a referência importante pois ela aponta para o nascimento da “rainha espiritual” do grupo, cria-se a hierarquia do culto. A rainha é a responsável por incitar uma caçada bizarra, que simboliza a ritualização das refeições, funcionando no eixo sacrifício-banquete. Com o sangue e a comida, surge o contraste mais evidente em relação à obra de Golding pois se instala mais ativamente o tema do corpo e, por extensão, do sexo (não à toa, é o episódio em que se descobre também uma gravidez e casais se estabelecem). Senhor das Moscas (e sua fonte primária Robinson Crusoé) não tem qualquer menção literal à ideia de sexo ou mesmo de romance. Assim como não trazem nenhuma personagem feminina. A única referência a uma mulher em Senhor das Moscas é quando Porquinho lembra de uma tia, sua tutora após ele se tornar um órfão de guerra. Ainda que haja cenas dos meninos nus, tendo problemas intestinais e crises de choro, além dos símbolos fálicos, a corporalidade é tangenciada. Na série, mesmo depois do resgate, o sexo permanece um assunto. A protagonista Shauna, agora adulta (a excelente Melanie Lynskey. Sophie Nélisse a interpreta na primeira fase. O casting é 10/10), é apresentada ao público se masturbando no quarto da filha adolescente, olhando excitada para uma foto do genro.
O “voo da abelha” do oitavo episódio diz respeito, entre outras coisas, à Laura Lee (Jane Widdop), a única figura religiosa entre as sobreviventes, uma cristã devota. De certa maneira, ela pode ser comparada a Simon, o único personagem de nome bíblico em Senhor das Moscas (em hebraico, Simon quer dizer “ouvinte”). Ambos não duvidam do sobrenatural. Simon é quem conversa com a cabeça da porca na estaca, o Senhor das Moscas encarnado. Laura Lee é quem batiza e acredita em Lottie (Courtney Eaton), a personagem de visões revelatórias. Os dois são personagens ambivalentes, pois representam uma metafísica tradicional, justamente o elemento que precisa morrer para que uma nova tradição floresça. Como os garotos da ilha, as adolescentes fundam sua própria religião animista, acreditando no espírito da floresta merecedor de oferendas. É uma simbologia de duplo sentido, caracterizada ao mesmo tempo por uma ideia colonial de “selvageria” e uma imagem de refundação da sociedade, e como consequência, a criação de uma nova linguagem.
A história de crianças perdidas na natureza é bem mais ambiciosa do que parece. Não se concentra apenas no episódio de aventura ou no trauma compartilhado. As referências e as imagens das obras parecem perguntar: é possível fazer escolhas nas situações mais extremas? somos realmente livres? ou nascemos pecadores, com a danação sempre à espreita? A verdade se mostra mais complexa, não somos totalmente livres, mas não nascemos corrompidos. O fato das histórias terem personagens jovens problematiza a questão da culpa e da inocência. Em sua origem, “infantil” é a qualidade daquele que não sabe falar. Por essa razão, a tradição romântica coloca crianças e animais como criaturas inocentes: porque não possuem linguagem. Por isso mesmo, um bebê e uma formiga são inocentes de modo radicalmente diferente de um adulto que se recusa a torturar outra pessoa.
Uma criatura provida de linguagem possui muitos recursos disponíveis para a abstração. É capaz de elaborar conceitos como justiça, moral, religião e direito. A associção entre linguagem e poderes divinos da criação acontece em vários pontos da “tradição ocidental”, desde os rabinos estudiosos da Cabala até poetas do Romantismo. Como a maioria das fontes de invenção, contudo, essa capacidade também é entendida como potencialmente nociva. Esse animal linguístico está em constante perigo de se aniquilar rápido demais. Na Bíblia, o mito da queda traz humanos como seres contraditórios, cujo poder criativo e destrutivo têm a mesma origem. Quando submetidos à tentação do desconhecido (a grande tentação), Adão e Eva sucubem e provam o fruto proibido. Isso explica porque católicos, por exemplo, batizam crianças muito pequenas. Seres humanos nascem em pecado, a inocência infantil não merece crédito por si só. Chama-se pecado original porque ele está na raiz, desde o princípio. Uma ideia parecida será importante para a psicologia alemã romântica do século 18 e 19, na qual a infância é entendida como um momento de traumas irreparáveis — algo muito diferente do senso comum que entende uma “infância romântica” como período idealizado e ingênuo.
Tanto em Yellowjackets quanto em Senhor das Moscas, crianças e adolescentes são colocadas diante do desconhecido em si, nos outros e no mundo, sendo elas mesmas um grande símbolo do contraditório. Na sociedade moderna, trata-se de humanos semissocializados, que são mais valorizados pelo potencial para o futuro do que por seu valor inerente. É uma alegoria de como se elabora o irracional, mas também o abstrato, e parece que precisa de uma linguagem nesse esquema aí. Esse indizível misterioso é algo percebido pelo grupo, mesmo que alguns papéis mais iluministas tentem entender os acontecimentos racionalmente. As personagens são profundamente humanas a medida que querem entender aquilo que não se sabe, decifrá-lo e elaborá-lo em conjunto, apesar do medo. As abelhas, por outro lado, não estão pensando nisso. Não podem saber que não sabem. Não indagam o que tem atrás daquela porta. Elas apenas seguem dizendo umas as outras onde ficam as melhores flores da região.
*notas*
A tradução de Senhor das Moscas que li é do Sergio Flaksman e foi publicada pela Companhia das Letras em 2014.
Leituras sugeridas mais ou menos relacionadas a esse texto: On evil, do Terry Eagleton; o verbete Cultura, do livro Palavras-chave, do Raymond Williams.
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*por aí*
Parabéns pelo texto, aprendi muito.