notar, v.t. e pred. – Colocar nota, sinal ou marca em; minutar; redigir; prestar atenção, reparar em; observar; tomar nota de; anotar; redigir; estranhar; repreender; registrar no livro de notas (o tabelião). Acusar; qualificar.
No dia 2 de setembro de 1834, uma carta saiu do Rio de Janeiro com destino a Portugal. Ela foi escrita pelo pequeno dom Pedro II, na época uma criança de oito anos. Infelizmente, o alvo da carta, seu pai, cometeu uma mesquinharia ao morrer de tuberculose no dia 24 daquele mesmo setembro. Sem poder prever seu futuro, a carta extraviada se transformou em um melancólico documento do período regencial brasileiro. Um sobre-escrito na linha 3, feito por uma pessoa de caligrafia diferente, diz em letra cursiva: “Não chegou a tempo”. Quase dois séculos depois, a carta segue entre as elites e mora atualmente no Morumbi, em São Paulo, na Fundação Maria Luisa e Oscar Americano.
Primeira Carta notada por Vossa Majestade o Imperador, escrevendo a seu Augusto Pai (Não chegou a tempo) Rio de Janeiro em 2 de Setembro de 1834
Meu querido papai de coração, sinto que estivesse doente e agora já sei que está melhor, o que estimo muito, eu passo bem, estão bem as manas que mandam saudações a meu querido papai, a mamãe e a mana e a mana pequena estão bem, eu igualmente. Papai perdoe as minhas faltas, eu mesmo noto as minhas Cartas, dou parte a Vossa Majestade Imperador que eu e as manas estamos muito contentes porque foi nomeado o nosso amigo o Marquês de Itanhaém que gosta muito de nós, e nós gostamos muito dele. Dei-me Vossa Majestade Imperador a sua benção
seu afetuoso e obediente Pedro Imperador de Alcântara Vossa Majestade Imperador Pedro os meus criados beijam a Vossa Majestade Imperador (transcrição modernizada)
A caligrafia antiquada traz a mensagem em um português igualmente datado, mas nada disso impede a compreensão geral do texto. O menino comenta a melhora da saúde do pai, numa ironia fúnebre, manda saudações para familiares, relata o estado emocional das irmãs. Conta uma notícia sem muitos detalhes, a nomeação do “nosso Amigo o Marquez de Itanhanhen”. Trata-se de um documento banal, sem emoções marcantes, não fosse o pai morto antes de ler a correspondência. A impressão inicial é que não há segredos a serem desvendados. Entretanto, isso também não impede que um detalhe chame a atenção, plantando a dúvida: o que é uma “carta notada” (linha 1)? A mesma informação é repetida na linha 16, “noto as minha carta”. Segundo o dicionário Michaelis, as principais definições atuais de “notar” são: “tomar nota de, fazer anotação, anotar; colocar nota, marca ou sinal em; registrar (o tabelião) escritura no livro de notas; representar por meio de caracteres ou símbolos gráficos”. Ou seja, “escrever” aparece em um sentido restrito e essas definições não se encaixam propriamente à situação narrada.
Costumamos esquecer a historicidade das palavras. Não passa pela nossa cabeça que elas um dia tiveram um significado distinto do atual, cuja variação de sentido pode ser extrema ou sutil. Pelo menos até a primeira metade do século XIX, “notar” tinha uma acepção a mais, depois perdida com o tempo. Aspectos desse tipo são detectáveis quando se pesquisa em dicionários de época, pequenos cemitérios de palavras. No Vocabulário Português-Latino (1712-1728), de Raphael Bluteau, uma das definições de “notado” é: “Dictado. Vid. Dictar. Notador. Ha Notador, que dicta, a quem eſcreve”1. A partir desse dado, entende-se que a carta pode ter sido ditada a alguém pelo jovem dom Pedro II, o que talvez explique desvios da norma padrão de escrita do período – como o uso de forma verbal “estivesse” (linha 7), a falta de concordância nominal “a minhas faltas” (linha 15), “as minha carta” (linha 16), e a grafia de “affetuosso” (linha 25) –, algo incomum para uma criança da realeza, alfabetizada na melhor educação proporcionada por aquele ambiente. Surge, então, o nosso mistério: quem, de fato, escreveu a carta? Quem é essa figura oculta? Ela nos diz alguma coisa?
Peço desculpa pela digressão mas vai fazer sentido e, se você chegou até aqui, acredito que aguenta mais uma maluquice sobre uma carta velha. Vamos lá: o estudo material de textos escritos, em um sentido amplo, chama-se filologia. É a área do conhecimento que se dedica, em especial, à reprodução ou reconstrução de escritos do passado, literários ou não. A prática é antiga, desempenhada desde filólogos alexandrinos na Grécia do século III a.C. O modelo mais próximo do atual começou no século XIX e deu origem à Crítica Textual, popularizada através do método do filólogo alemão Karl Lachmann (1793-1851) e voltada para edição e fixação do texto em sua versão “genuína” ou “original”. O século XIX europeu pirou tanto na ideia de “original” que a palavra vai desenvolver dois significados contraditórios: ela pode designar algo primordial, primitivo, existente desde o princípio (como em “pecado original”); e algo novo, nunca feito antes, que nunca existiu, que é distinto dos padrões encontrados (como em “pensamento original”). Há ainda o sentido de algo que serve como matriz, de base para cópias, a acepção mais conveniente para a filologia.
Ainda que a definição básica do trabalho filológico seja o “estudo de textos escritos”, há diversas ambiguidades que levam diferentes autores a defini-lo de diferentes maneiras, mas não faço questão de amolar vocês com isso. Temos ainda outros pepinos variados da área, desde cânones de tradição oral com poucos manuscritos até livros inteiros publicados em capítulos avulsos no jornal, deixando, no fim, “original” um formato a ser definido caso a caso. Os tipos de edição desses originais se estabelecem em dois grandes grupos: monotestemunhais (baseadas em apenas um testemunho) e politestemunhais (baseadas no confronto de dois ou mais testemunhos de um mesmo texto). Vale explicar que “testemunho”, na filologia, é o termo técnico para um texto escrito “que pode ter sido fixado pelo próprio autor (testemunho autógrafo), por outra pessoa mas com supervisão do autor (testemunho idiógrafo) ou ainda por outra pessoa sem supervisão do autor (testemunho apógrafo)”2. Trocando em miúdos, o critério fundamental de análise de um testemunho é: a pessoa escreveu o texto por ela mesma, autonomamente? Se não, como a feitura e a transmissão do texto se deram? No Brasil, há debates a respeito de documentos famosos, como a carta-testamento datilografa de Getúlio Vargas (o que é estranho porque ele não sabia usar máquina de escrever. Aqui o biógrafo dele, Lira Neto, falou disso no Twitter) e a dúvida sobre de onde raios veio a expressão “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”, pois ela não aparece em nenhuma correspondência de Pero Vaz de Caminha. No caso da carta do menino Pedro, temos aparentemente um testemunho idiógrafo, no qual a criança dita e uma outra pessoa escreve. Mas apenas uma palavra de sentido dúbio não é o suficiente para bater o martelo.
livros e brinquedos
Gastei parte do meu tempo pensando em como seria a educação de uma criança muito rica, entre as mais ricas do mundo, naquela época. O acesso a livros, por exemplo, era bastante restrito no começo do século XIX em território brasileiro. A primeira prensa do país era um monopólio real, que chegou ao Brasil em 1808 junto com a corte portuguesa. Criada por meio do decreto de 13 de maio daquele mesmo ano, a Impressão Régia era a única tipografia existente no Rio de Janeiro até a Independência. A oficina imprimia a legislação produzida, fabricava livros em branco e editava publicações. Por ordem da Coroa, os livros tinham distribuição gratuita na corte. A princípio, a família do menino era dona da primeira “fábrica” de livros do país. Todo um outro nível de nepobaby, o nepobaby raiz, o convencional aristocrata.
Nascido em 2 de dezembro de 1825 no Paço de São Cristóvão, na capital do também recém-nascido império brasileiro, dom Pedro II era órfão de mãe no momento da escrita da carta (a imperatriz Leopoldina morrera em 1826) e seu pai, com a crise deflagrada em 7 de abril de 1831, retornou a Portugal deixando-o como herdeiro do trono. O contexto da infância de Pedro de Alcântara é marcado pelas tensões políticas entre Portugal e Brasil, assim como pelas brigas entre parentes, pois dom Pedro I disputava em terras lusas o poder com o irmão Miguel, ambos de olho no trono de um rei morto. Sem pais presentes, o pequeno imperador foi deixado para ser criado por burocratas, o que não era de todo incomum. Entre eles, estava o então ministro José Bonifácio, designado por Pedro I à Tutoria Imperial.
Na biografia de 1938, História de dom Pedro II, 1825-1891, o diplomata e historiador Heitor Lyra, num tom algo nostálgico, traz um detalhado cenário a respeito da vida do último monarca brasileiro. O terceiro capítulo (“Livros e brinquedos”) do primeiro volume se dedica especialmente à infância de dom Pedro II, mencionando vários elementos de sua formação. A biografia começa apresentando a aia Mariana Carlota de Verna, apelidada de Dadama, escolhida também por Pedro I para a posição. Uma aia é uma preceptora responsável pela educação de crianças nobres, uma mistura de tutora com dama de companhia, uma babá deluxe. Dadama foi uma influência importante na criação e educação dos primeiros anos de Pedro de Alcântara. Obviamente, uma mulher de quem nunca ouvimos falar.
Há indícios de que dom Pedro II tinha um talento especial para “as letras” e seu desempenho nessa matéria aparece em outros documentos, como em uma carta de Dadama enviada, do Rio de Janeiro, a dom Pedro I no dia 23 de outubro de 1831. O texto diz coisas como o “Imperador, este menino raro em tudo, está adiantadissimo. Está lendo português quasi corretamente; lê também inglês e vai agora lêr francês; principiando agora a dar lição regular com Mr. Boiret faz-lhe os cadernos de palavras, pergunta-lhe e sem estudar responde-lhe a todas. Sabe todas as palavras, está aprendendo gramatica, isto sem ter seis anos”. Claro que pode haver um grau de adulação cortesã nas afirmações, mas o tema será reincidente. Lyra faz vários comentários a respeito da educação do herdeiro do trono, alguns deles engraçados porque já emanavam algum viralatismo à brasileira, no clima olha, nem nossa aristocracia é grande coisa, mas o rapaz se esforçava:
A educação que lhe ministravam nada tinha de especial. Não era melhor nem peor do que aquela que recebiam nessa idade os filhos das famílias abastadas da época. Ensinavam-lhe um pouco de tudo: noções gerais de ciencias fisicas e naturais, de literatura, de religião; um pouco de musica, de desenho, de dansa; geografia e historia, as matematicas elementares. E as linguas: portuguez, bem entendido; francez, inglez e alemão; e o latim e o grego, indispensaveis, entao, a todo curso de humanidades. No estudo das linguas, unicamente, é que a sua educação era mais severa. Aliás, êle revelaria desde cêdo uma grande propensão para tais estudos. Tinha para isso uma das principais condições: admiravel memoria. Tudo quanto o Monarca viria depois a aprender – e seria consideravel – fóra desses principios gerais, dever-se-á exclusivamente á sua iniciativa, á sua perseverança, á sua decidida vontade de ilustrar-se. Nesse particular, como em muitos outros aspéctos, êle será produto do proprio esforço. Aos nove anos – em 1834 – já lia, escrevia e traduzia regularmente o francez. Começava a lêr e traduzir o inglez. Nessa mesma idade, segundo testemunho dos mestres, conhecia já o globo terrestre, as capitais dos paizes, os acidentes geograficos mais importantes. Não era nada de famoso, claro: mas denotava aplicação. (p. 89)
Sugere-se que, como hoje, “a melhor educação que o dinheiro pode comprar” não é essa Coca-Cola toda, mas é importante o suficiente para fazer uma diferença indispensável. Temos pistas sobre a formação de Pedro de Alcântara e podemos fazer algumas inferências. Uma suposição razoável é a de que desvios de ortografia e concordância em português parecem improváveis por parte do menino, pois em 1834 ele “já lia, escrevia e traduzia regularmente o francez. Começava a lêr e traduzir o inglez”. Não há como negar, entretanto, o tom infantil da carta notada, evidenciando que uma criança é o autor intelectual do texto. Já o autor de facto era alguém letrado o bastante para redigir a carta, porém não parece um letramento treinado pela monarquia, de pompa e destreza. Na parte debaixo da segunda página da carta é possível ver uma rasura de ponta-cabeça, é a primeira tentativa de escrever a missiva que dá errado por algum motivo. A aposta de Lyra para o autor de facto, na verdade, autora, é Dadama, a aia – o que me soa totalmente aceitável. Muito cedo, o Brasil se encaixava nos estereótipos do pai que saiu para comprar cigarro e da babá criando filhos dos outros.
personagem oculta
Os dois personagens mais evidentes na carta são pai e filho, dom Pedro I e II, destinatário e remetente. Outras figuras são mencionadas, ainda que não nominalmente (com exceção do marquês de Itanhaém). As menções são “Manas”, na linha 10 e 18, “Mamman”, na linha 12, “mana pequena”, na linha 13, “Marquez de Itanhanhen”, na linha 20 e “meus criados”, na linha 27. Pela datação é possível dizer que “manas” são as irmãs de dom Pedro II, Januaria, que se tornaria condessa d’Aquila (Sicília), e Francisca, futura princesa de Joinville (França). Ambas aparecem em uma litografia ao lado do irmão no mesmo ano de 1834, todos trajando preto em luto pela morte do pai. Na ocasião, as crianças têm entre 9 e 12 anos de idade.
Também pela data é possível afirmar que a “Mamman” em questão não é a mãe biológica de dom Pedro II, Imperatriz Leopoldina, mas sim a princesa alemã Amélia de Leuchtenberg, a segunda esposa de seu pai e portanto madrasta dos primeiros filhos de dom Pedro I. A menção à “pequena mana” diz respeito a filha de dona Amélia com seu pai, nascida em Paris e morta prematuramente na ilha da Madeira. A única pessoa citada nominalmente no testemunho é o “Marquez de Itanhanhen”, nomeado a um cargo que a carta não explicita mas pelos eventos daquele período se pode inferir que se trata da nomeação de Manuel Inácio de Andrade Souto Maior Pinto Coelho (nenhuma maturidade para esse sobrenome), o marquês de Itanhaém, à posição de tutor imperial. Em dezembro de 1833, o ministro da Justiça Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, futuro visconde de Sepetiba, fez um decreto suspendendo José Bonifácio da Tutoria Imperial e nomeando o substituto marquês de Itanhaém.
Parte do que é descrito por Lyra como uma intriga palaciana entre um grupo partidário de José Bonifácio, acusado de estar do lado dos portugueses, e outro alinhado a Aureliano, a nomeação do novo tutor é uma das notícias que o jovem imperador acha digna de ser citada. Ele demonstra satisfação ao dizer “eu e as manas estamos muito contentes” pois o marquês “gosta muito de nos, e nos gostamos muito dele”. Se Dadama é quem, de fato, redigiu a carta, essa notícia é totalmente de seu interesse. Mas antes de explanar porque uma simples aia estaria tão envolvida em disputas de poder do império, vamos localizá-la na constelação de personagens dessa carta, ainda que ela seja a personagem oculta.
Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho se estabeleceu na corte carioca em 1808, ao lado do marido, Joaquim José de Magalhães Coutinho, e dois filhos. A família estava na comitiva da família real portuguesa e tinha uma tradição de serviços prestados à monarquia. Claramente, os Magalhães Coutinho não eram pés-rapados per se e integravam certa fidalguia, mas não tinham grandes posses. O pai de Mariana, Ernesto Frederico de Verna, foi um capitão conhecido por seus feitos no exército português e morreu em combate em 1795. Joaquim, o marido de Dadama, ganhou um emprego na corte e se tornou guarda-roupa de Pedro I – trabalho luxuoso que durou pouco, cerca de oito meses após a indicação Joaquim teve um ataque súbito em uma missa e morreu em 9 de agosto de 18233. Longe de casa, Dadama estava viúva com três filhos sob sua tutela.
Vista pela corte como uma senhora culta, católica e de boa família, Dadama era respeitada por Pedro I, que a convidou para o cargo de aia quando soube que teria mais um filho. Há indícios de que ela negou o convite a princípio, alegando suas obrigações com sua chácara, o Engenho Novo. Como bom monarca, dom Pedro I resolveu essa questão ao empregar todas as pessoas da chácara no Paço de São Cristóvão, dando início a carreira pública da senhora Mariana Carlota de Verna (lembrando que o cargo de aia de um futuro imperador era considerado uma função de Estado). Outro aspecto a favor de Dadama era o fato de ser portuguesa, traço que amenizaria possíveis problemas relacionados à precariedade da corte carioca. Tensões dessa ordem tinham acontecido com a inglesa Maria Graham, que aspirava ao cargo de preceptora da princesa Maria da Glória mas durou apenas dois meses na função. Graham encarava como um grande desafio educar crianças nobres sem as cerimônias e protocolos comuns dos palácios europeus, no fim sendo rapidamente dispensada.
Poucos anos após o convite do imperador, Mariana Carlota de Verna estaria no centro de uma disputa política ao entrar em conflito com figurões da corte. Como tutor, José Bonifácio era autoridade máxima dentro do Paço de São Cristóvão, responsável pela educação das crianças e pelo funcionamento da casa. Foi questão de tempo até atritos com Dadama aparecerem, em especial, por discordar de certas decisões da aia. Há artigos que suspeitam da rejeição de Bonifácio a mulheres em cargos de educação da nobreza, partidário da ideia de que a formação do príncipe deve ser de responsabilidade de homens4. Supõe-se que ele teria lido e gostado de um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris, contrário à participação de mulheres na educação de dom João V. Para além da suposição, existe a versão de que Bonifácio suspeitava, não sem razão, que Dadama conspirou por sua saída do cargo, ao lado da esposa de Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho e do mordomo real Paulo Barbosa. O grupo político contrário a Bonifácio recebeu o simpático nome de “Clube da Joana” e parecia estar ao lado da aia na disputa.
Dois golpes do destino vão ajudar a sepultar as aspirações do tutor. A primeira é a morte da princesa Paula Mariana, aos 9 anos, em decorrência da malária, em 16 de janeiro de 1833. O evento colocou em cheque a competência de Bonifácio em garantir o bem-estar das crianças e soma-se a isso o fato de que foi Dadama quem cuidou e esteve ao lado da menina por onze dias, até o falecimento. O outro evento é, na verdade, menos destino e mais ousadia. Numa jogada digna do pombo no tabuleiro de xadrez, Bonifácio cria animosidades dentro do palácio ao demitir, em agosto de 1833, Mariana Carlota de Verna e sua filha Maria Antonia de seus cargos. Ana Romana de Aragão Calmon, a condessa de Itapagipe, é nomeada a camareira-mor e, concomitantemente, a aia de dom Pedro II. Há boatos de que o barraco saiu pelas portas do Paço e tomou o Rio de Janeiro, com gritos de “Abaixo o tutor!” em uma apresentação no Teatro São Pedro. O prego no caixão de Bonifácio veio quatro meses depois, quando Aureliano como ministro da Justiça, via decreto, o destitui do cargo da Tutoria Imperial. Acabou sendo preso pelo governo em sua casa, na ilha de Paquetá.
Chegamos finalmente ao relato da carta notada, que nunca viu seu destino: “estamos muito contentes porque foi nomeado o nosso Amigo o Marquez de Itanhanhen”. O sentido subterrâneo dessa notícia é que Dadama foi vencedora na disputa interna ocorrida no Paço de São Cristóvão. Assim que tomou posse como tutor, o marquês reconvocou Mariana Carlota de Verna e sua filha para exercerem funções no palácio. Dadama, de forma interina, virou camareira-mor, conforme registrado em decreto de 1 de setembro de 1834. Passou a titular em 1 de agosto de 1840, onde ficou até a maioridade de dom Pedro II. Ganhou também, finalmente, um título de nobreza, agora atendendo por condessa de Belmonte. Um detalhe numa carta antiga apontou para uma mulher também pouco delineada, que discretamente influenciou os rumos do país.
*notas*
Achei que filologia estava fora de moda, mas aparentemente nem tanto. No episódio 25 (O que há num nome), da Rádio Novelo, há um bloco dedicado aos estudos dos nomes de figuras centrais do Quilombo de Palmares.
O programa foi feito a partir da matéria que saiu em janeiro de 2023 na revista da FAPESP: Documentos originais revelam novos aspectos da história de Palmares
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Não vou atualizar a grafia de escritos antigos, a não ser a paráfrase modernizada da carta, que aparece na citação das fotos. Pessoal precisa saber que os idiomas já foram escritos de jeitos diferentes.
“Nos dois primeiros casos, pode-se se dizer ainda que se trata dos originais, pois registram efetivamente a vontade do controle exercido pelo próprio autor de forma direta (test. autógrafo) ou indireta (test. idiógrafo); já o terceiro caso, diz-se que se trata apenas de uma cópia. Ao testemunho utilizado como fonte na produção da cópia, chama-se modelo ou antígrafo.” citação do texto Introdução à crítica textual, de César Nardelli Cambraia.
A confiança depositada em "Dadama": uma análise a partir de cartas trocadas entre d. Pedro I e Mariana Carlota de Verna, de Gilmara Rodrigues da Cunha.
Reminiscências da primeira mestra de d. Pedro II: Mariana Carlota de Verna, de Gilmara Rodrigues da Cunha e Maria Celi Chaves Vasconcelos.
Oie! Cheguei aqui pelo Twitter. Curti bastante a edição e essas entrelinhas e personagens ocultos da carta. Pela minha experiência, sempre rolam umas desinscrições em edições novas. Acho que tem gente que se inscreve de gaiato (o subscription flow do Substack é traiçoeiro e induz às pessoas a se inscreverem em mais newsletters do que querem) e depois só sai da lista. Não necessariamente reflete um julgamento sobre o tema.
Bom demais. O que mais se sabe sobre Dadama?