mudança | edição #03
uma tradução e uma análise do poema “prazeres” (1954), de bertolt brecht.
mudança, s.f. – Ato de mudar; ato de fazer passar ou transportar alguém ou alguma coisa de um local para outro; mudança das coisas de um estado para outro; modificação, modo de pensar, sentir, etc.; alteração, modificação, variação, troca.
Prazeres
O primeiro olhar pela janela de manhã
O livro velho reencontrado
Faces entusiasmadas
Neve, a mudança das estações
O jornal
O cachorro
A dialética
Tomar uma ducha, nadar
Música antiga
Sapatos confortáveis
Compreender
Nova música
Escrever, plantar
Viajar
Cantar
Ser gentil
Bertolt Brecht (1898-1956) produziu arte de maneira megalomaníaca. Escreveu espetáculos de teatro, poesia, ensaios e teoria crítica. Mas não apenas: ele também guardou uma quantidade insana de cadernos, papeizinhos e rascunhos com qualquer rabisco criativo. Arquivista de si mesmo, Brecht deixou mais de meio milhão de documentos, atualmente reunidos em um arquivo com seu nome na Academia de Artes de Berlim. Entre todos eles, escolhi traduzir e analisar somente um – por motivos, claro, particulares. Eu gostei dele e fiquei pensando nele por um tempo. Sempre tive dificuldade de penetrar na compreensão de um poema. Esse foi o primeiro que realmente entendi; análise de poesia, para mim, é a mais críptica das análises. Bertolt Brecht estava preocupado em se fazer entender por mentes mais rupestres, como a minha. Para ele, a clareza e a objetividade eram sinais de engenho poético – para mim como leitora, uma sorte muito grande.
“Prazeres” (1954) integra a obra tardia de Brecht e trata-se de um texto simples à primeira vista, até mesmo banal. Em um formato de lista, amontoa itens relacionados ao título, que nos fez uma promessa vigorosa – afinal, “prazeres” são o contentamento, a alegria, a diversão. O poema foi escrito quase dez anos depois do colapso do governo nacional-socialista e apenas cinco anos após a separação territorial da Alemanha, completada com a construção do Muro de Berlim, em 1961. Brecht retorna do exílio à Europa em 1947 e no ano seguinte opta por se fixar na Alemanha Oriental, onde funda a renomada companhia de teatro Berliner Ensemble, sob sua direção artística e administração da atriz vienense Helene Weigel. Parte dos artistas que regressaram à Alemanha escolheu o lado oriental, a RDA (República Democrática Alemã), e dedicaram-se a uma experiência notável nas letras do século XX: a tentativa de criar uma arte e uma cultura de humanidade a partir da devastação moral legada ao nosso século pelo nazismo.
Ao lado de Brecht, estavam pensadores e pensadoras crentes numa arte com função no mundo, existente no campo da política, e não como uma força etérea pairando nas nuvens, acima das outras atividades mundanas. Eles foram testemunhas oculares de um diagnóstico sinistro. De fato, o Terceiro Reich foi um dos resultados diretos do cânone alemão. Para além da vulgaridade de afirmar que determinadas obras ou autores foram nazistas (alguns foram mesmo), é inegável que a historiografia conservadora alemã do século XIX, o fenômeno da identidade romântico-nacionalista e a busca por uma tradição própria “original” acabaram por inventar um tipo de política cultural. Grosso modo, a Alemanha se via culturalmente “atrasada” quando comparada ao passado antigo e medieval de países como França, Inglaterra e Itália. Então, os séculos XVIII e XIX foram os anos de correr atrás do prejuízo. Contudo, diferente de outras nações da Europa, os alemães não tiveram as revoluções que culminaram nos processos de modernização (assim como o Brasil), saltando “abruptamente”, via acordão, do modelo da aristocracia feudal para a democracia moderna. Na historiografia, essa análise se chama Sonderweg, o “caminho particular, especial” dos povos de língua alemã – não vou me alongar nesta parte, mas um dos resultados desse processo histórico específico seria o Nacional Socialismo.
Com a queda do governo nazista, uma pergunta se impôs aos opositores do regime: para quê serve um cânone se ele não previne a barbárie? O produto extremo dessa “tradição ocidental” era, diante de todos, a mais pura indignidade. Em ensaios e discursos políticos de Thomas Mann (tal qual Brecht, um exilado), como The War and the Future (1944) e Germany and the Germans (1945), a natureza dupla da mentalidade alemã é analisada como um traço à la “O médico e o monstro”. Para o autor, a semente que germina o desejo de criar obras de arte grandiosas, inquestionáveis em sua qualidade e magnitude, é a mesma que germina a ideia de supremacia, do sonho de dominação mundial. Mann chama os alemães literalmente de alienados políticos, cuja grande contribuição na arte foi uma Ur-Poética mítica (citando, claro, Wagner) nada comprometida com a realidade, em contraste com o mundo que celebrava os romances sociais de Balzac, Zola, Dickens e Tolstói. Para autores como Mann, quem se preocupava com uma nova estética foi obrigado a repensar sua relação com o cânone e os efeitos da arte na sociedade.
Sem dúvidas, exilados tinham diferenças políticas e estéticas, formando grupos heterogêneos espalhados entre a URSS, França, Palestina, Estados Unidos e América Latina. Contudo a maioria esquerdista deles via vantagens em escolher a RDA após 1945 pois os aliados ocidentais, principalmente os americanos anticomunistas, eram contrários a qualquer política cultural ligada ao tema do fascismo e antifascismo. A hostilidade a esse debate acabou por afastar esses exilados da vida cultural do ocidente (a RFA, República Federal da Alemanha), transformado em uma democracia liberal sob influência dos Estados Unidos. Antes de retornar à RDA, o próprio Brecht teve sua experiência no paraíso capitalista e passou um período exilado na Califórnia, um lugar abominável aos seus olhos. Por pouco, a peça O Círculo de Giz Caucasiano (1944) não virou um espetáculo da Broadway. O projeto empacou porque, segundo os produtores, faltava conflito, tensão e identificação na peça (se parar para pensar, até hoje o molde narrativo da indústria cultural). Quatro anos depois, Brecht voltaria para uma Alemanha inteiramente diferente.
obra coletiva
Desde o começo de sua carreira na República de Weimar (1918-1933), Brecht tinha interesse em refletir sobre o funcionamento (ou não) do capitalismo e a prosperidade burguesa, sempre algo mafiosa, imbricada na criminalidade. Seu maior sucesso comercial, A ópera dos três vinténs1 (1928) é talvez o trabalho mais conhecido dessa verve. A começar que não se trata de uma ópera de verdade. Não representa personagens “elevados”, mas sim a escória da sociedade: bandidos, prostitutas, policiais corruptos, vagabundos e mendigos – os protagonistas do pânico moral até hoje. A peça começa apresentando Jonathan Jeremiah Peachum, o empresário dono da “O amigo do mendigo”, uma loja de roupas dedicada a pedintes. Este vai ser outro traço marcante na obra de Brecht: a falta de respeito como elemento performático. Tudo o que é grandioso demais precisa ser derrubado. No início do século XX, existia um cenário no qual certos produtores e consumidores de literatura estavam cansados do formalismo estetizado, cheio de sentimentalismo extático. O entendimento da forma e da função literária havia mudado.
No entanto, a obra de Brecht não é só trabalhos que sinalizam os defeitos do sistema vigente. Várias obras da sua produção tardia trazem uma nota otimista, quase esperançosa, movida por uma espécie de “otimismo da ação”2 (termo emprestado do obituário que Michel Laub fez de José Celso Martinez Corrêa (1937-2023), dramaturgo também dono de um quê brechtiano). O poema “Prazeres” foi escrito pelo autor dois anos antes dele morrer. Composto majoritariamente por nomes e verbos, o texto tem uma estrutura compreensível, aparentando não requerer uma interpretação mais profunda. Apesar de erudito e versado na tradição, Brecht tinha como parte de seu projeto estético o sprachwaschung, a “lavagem da língua”, a retirada dos adornos dispensáveis do texto. Nos seus cadernos, diz que gostaria de escrever em um basic german (anotado em inglês mesmo), acessível a todos. Com escrita muito simples, “Prazeres” funciona como um pequeno inventário de recomendações que extraem felicidade da vida. Brecht alude a uma longa tradição poética e filosófica, vinculada ao que se chama em alemão de gelingendes Leben, ou “a vida bem-sucedida”, cuja referência mais antiga dentro da tradição europeia data dos tempos de Sócrates. Se a vida oferecida pelo sistema capitalista é infeliz, não apresenta alternativa à exploração, como é a vida boa? O autor prefigura no poema sua utopia e dá uma versão do bem-viver.
Em alguma medida, os prazeres elencados quebram a expectativa gerada pelo título. No mundo da realidade consumista dos anos 1950, com o boom do capitalismo americano e alemão, podia-se pensar em prazeres individuais, hedonistas, mas não é o caso. Elementos da vida comezinha são citados, formando um conjunto de traços ligados a uma rotina mundana. O verso de abertura do texto (“O primeiro olhar pela janela de manhã”) sinaliza através de um sentido (o olhar para o exterior, reforçando o universo das sensações) tanto uma moldura para um ponto de vista (uma janela) quanto uma marcação de tempo (a manhã). Inicia-se uma sequência de imagens e cortes que dão a qualidade cinematográfica do poema, como slides imaginativos passando no projetor.
Os segundo e terceiro versos introduzem traços da cultura humana coletiva: “o livro velho reencontrado” e “faces entusiasmadas”. A referência à leitura evidencia uma atividade intelectual que é ambivalente, ao mesmo tempo solitária e um meio de acessar conhecimentos públicos. Não despreza uma tradição cultural anterior e traz um vínculo com as memórias. As “faces entusiasmadas” (Begeisterte Gesichter) aparecem reforçando um coletivo vibrante, ainda que não esteja claro o motivo do entusiasmo. Dentro da palavra begeisterte existe a palavra geist, o “espírito” – ou seja, são pessoas cheias de vida, com atitude entusiástica. Há, então, no quarto verso, um corte dos elementos culturais para marcadores da natureza: a neve, a mudança das estações. E novamente, no quinto verso, vê-se um item da cultura humana, o jornal.
Neste primeiro trecho do texto, é possível apontar três marcadores de tempo: a manhã, os dias (metonimicamente vinculados ao jornal) e as estações do ano. O poeta apresenta fatias de tempo em perspectivas diferentes. No início, a escala dos ciclos é a da natureza, pois as manhãs e as estações do ano são fenômenos cósmicos, dependentes dos movimentos de rotação e translação da Terra. Depois, o tempo é ligado à construção humana; o jornal surge como um índice cultural da mudança dos dias no calendário e novamente se evoca a leitura, ao lado do livro reencontrado. Trata-se de um movimento oscilando entre natureza e obra humana, visível por todo o poema. Brecht realiza uma construção que aproxima a cultura e a história humanas de um processo natural no qual o indivíduo se coloca em segundo plano e participa da obra coletiva contínua. Na verdade, o poema nega ativamente um sujeito lírico concreto e individual.
Em uma escolha curiosa, Brecht insere no sexto verso o cão, que a princípio é um elemento do mundo não-humano. Contudo, é um animal “aculturado” pelos modos das pessoas, cuja presença em nossas vidas é anterior ao processo de sedentarização, simbolizando uma parceria ancestral. Após a aparição do cachorro, ocorre o corte mais marcante do poema, no sétimo verso, que lista “a dialética”. Vê-se a presença mais abstrata do texto, um conceito importante da filosofia hegeliana e marxista, um dos índices mais próximos ao próprio autor Brecht, vinculado ao ideário comunista até o fim da vida. É importante notar que apesar de abstrata, a dialética em si aparece ao longo do poema. Na oscilação que integra cultura e natureza, materializa-se ela mesma no texto.
No segundo trecho do poema, há uma sequência de verbos de ação (em alemão, duschen, schwimmen). “Tomar uma ducha” e “nadar” aparecem lado a lado, ambos relacionados ao corpo. Se tomar banho pode ser entendido como índice civilizacional, nadar é uma atividade praticada por diversas outras espécies e humanos, no geral, por esporte ou diversão. São gestos que também fazem parte do universo das sensações agradáveis, assim como o verso seguinte, “sapatos confortáveis”. O mundo sensorial e o intelectual se fundem em “nova música” e atingem sua síntese em “compreender” – em alemão, begreifen, outro conceito da filosofia do eixo Hegel-Marx, traduzido às vezes como “conceituar” ou “perceber”. Acontece a retomada da cultura vinculando-se às menções anteriores ligadas a atividades de apreensão estética e do conhecimento. Como bom materialista, em seguida Brecht nos traz a divisão do trabalho, no caso, separados entre o fazer mental e braçal: “escrever” (schreiben) e “plantar” (pflanzen). Não à toa, o verbo que designa o trabalho físico também aborda o sentido do cultivo – por extensão, da cultura. O trecho sugere uma igualdade entre a atividade intelectual e as sensações físicas, as duas fontes de prazer.
As três últimas linhas do poema encerram o inventário com algo do entusiasmo dos rostos do terceiro verso: viajar, cantar e ser gentil. “Viajar” surge como indicação da experiência de troca que os deslocamentos proporcionam; “cantar”, assim como “nadar”, aparece como uma capacidade corporal desempenhada por outros seres vivos. O canto não-humano, inclusive, aparece em outro poema de Brecht do mesmo período, “Quando no quarto branco do hospital”, escrito poucas semanas antes da sua morte em 1956. Neste caso, cantar se refere em específico a um pássaro, o melro-preto, mas não deixa de ser curioso existir outro poema com “cantar” que fala também dos ciclos de tempo e da aproximação do humano com a natureza. A nota mais otimista de “Prazeres” aparece em seu verso de fechamento, “ser gentil”, reforçando o teor coletivista que o texto já apresentava, e parece ser a atitude esperada de quem olha pela janela no primeiro verso. A tradução de freundlich como “gentil” pode dar ares mais “burgueses” para o texto. Minha primeira tentativa foi “amigável”; Paulo César de Souza em sua versão escolhe “amigo”, mas o professor que orientou essa tradução confirmou que a ideia de gentileza fazia sentido e era aplicável. E assim ficou.
No fim da vida, Brecht se dedicaria a temas como a passagem do tempo, a ligação humana com uma obra coletiva (aqui, integrada à natureza), a continuidade e a morte. Em “Prazeres”, o leitmotiv do texto é a mudança. O texto é dominado pela esperança de que mudar não é só possível, como inevitável. Brecht nos diz: as mudanças não são uma ilusão, mas uma exigência da natureza e da história humana. Os objetos, atividades e comportamentos, aparentemente sem relação entre si, são um exercício imaginativo de reivindicação de uma objetividade, mas que só se revela depois de interpretados de modo ativo. Como disse o próprio Zé Celso, “tudo é possível quando se acredita que os seres humanos fazem a história, movem a história”.
*notas*
Usei dois livros para analisar a poesia de Brecht em português, Bertolt Brecht Poemas 1913 - 1956, da editora 34, com tradução e seleção de Paulo César de Souza, e Bertolt Brecht Poesia, da editora Perspectiva, com tradução e introdução de André Villas. Esta última edição é bilíngue, para quem se interessar.
A edição que li de A ópera dos três vinténs faz parte da coleção Teatro Completo em 12 Volumes, da editora Paz e Terra, com tradução de Wolfgang Bader e Marcos Roma Santa, e versificação das canções de Wira Selanski.
Já que estou falando de tradução, vou amolar vocês ainda mais com isso e decidi fazer uma conta no Instagram, em pleno 2024, dedicada a livros escritos em alemão que tem tradução ao português. Muito criativa, chamei de “Alemão em Português”. Ainda não tem nada, mas uma hora vai.
*me pague um café*
Se você gosta do meu trabalho, é possível fazer uma contribuição de qualquer valor via pix newsletterverbete@gmail.com.
A peça é uma adaptação do clássico inglês do século XVIII, The Beggar’s Opera, de John Gay, vertido para o alemão por Elisabeth Hauptmann. O compositor Kurt Weill assumiu a adaptação das músicas. Hoje perdemos a dimensão, mas a história do protagonista criminoso Macheath “Mack the Knife” fez tanto sucesso que foi música até na voz de Ella Fitzgerald.
Quando era perguntado se pretendia politizar o público com suas obras políticas, Brecht respondia que o público não, mas os atores com certeza. Um pragmático.
Cheguei aqui indicada pelo Rodrigo Casarin. Que coincidência: ontem eu assisti à peça O que nos mantém vivos?, coletânea de peças de Brecht encenada pela companhia do Renato Borghi, @teatropromiscuo, em temporada no RJ. Esse livro de poesias do Brecht editado pela Perspectiva foi exibido na peça. Que amor ao teatro do Renato Borghi: 87 anos, fez uma cirurgia de ponte de safena recentemente, era amparado pelos colegas e por uma enfermeira e atuou bravamente três horas de peça.
como pessoa leitora que vive na alemanha, luta com a alemanha e o alemão (pessoas & idioma), aprendi mais nesse seu texto que com os anos aqui. obrigado!